“Exílio” de Minas

No início do século XX, a Serra dos Alves abrigava portadores de hanseníase (lepra), doença estigmatizada na história da humanidade como um castigo de Deus. Acreditava-se que a lepra era uma punição divina a algum mal-feito que a pessoa tivesse cometido. O isolamento era decretado para os leprosos, que eram sumariamente alijados da sociedade. O indivíduo doente, junto com a família, tinha que partir e buscar as desabitadas regiões montanhosas para viver. A Serra dos Alves, por ser um povoado de difícil acesso, foi um desses “exílios” de Minas Gerais. Mesmo quando, tempos depois, descobriram que a doença era pouco contagiosa e curável, o preconceito ainda persistiu por várias décadas.

Hoje, a grandiosidade da beleza natural da Serra dos Alves, impele o visitante ao lazer contemplativo, e ao turismo de travessias por seus grandes campos rupestres, cachoeiras, trilhas e cânions.

Anúncio de João Alves

No dia 19 de novembro de 1889, João Alves Júnior, descendente “dos Alves”, publicou no Jornal Correio de Itabira um anúncio que, posteriormente, encantou até Carlos Drummond de Andrade.

À procura de uma besta – A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.
Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.
Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.

Artigo de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade, que trabalhou no mesmo Jornal em 1944, se encantou com o estilo da escrita de João Alves e “respondeu”:

55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro acorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.
Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”. Revelas aí a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente – deixando de lado outras excelências de tua prosa útil – a declaração final: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar” será “razoavelmente remunerado”. Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves, entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.